Vanguardeando Blog

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domingo, 30 de maio de 2010

Encontrando J. Laplanche e K.-B. Pontalis - EU ALGUÉM OBJETO ALGUM





EU ALGUÉM OBJETO ALGUM

A noção de objeto é encarada em psicanálise sobre três aspectos principais:
a)      Enquanto correlativo da pulsão, ele é aquilo em que e por que esta procura atingir o seu alvo, isto é, um certo tipo de satisfação. Pode tratar-se de uma pessoa ou de um objeto parcial, de um objeto real ou de um objeto fantasmático.
b)      Enquanto correlativo do amor (ou do ódio), a relação em causa é então a da pessoa total, ou da instância do ego, com um objeto visado também como totalidade (pessoa, entidade, ideal, etc.); (o adjetivo correspondente seria “objetal”).
c)      No sentido tradicional da filosofia e da psicologia do conhecimento, enquanto correlativo do sujeito que percebe e conhece, é aquilo que se oferece com características fixas e permanentes, reconhecíveis  de direito pela universalidade dos sujeitos, independentes dos desejos e das opiniões dos indivíduos (o adjetivo correspondente seria “objetivo”).

Nos escritos psicanalíticos, o termo “objeto” encontra-se, quer sozinho, quer em numerosas expressões como escolha de objeto, amor de objeto, perda do objeto, relação do objeto, etc., que podem desorientar o leitor não especializado. Objeto é tomado num sentido comparável ao que lhe conferia a língua clássica (“objeto da minha paixão, do meu ressentimento, objeto amado”, etc.). Não deve evocar a noção de “coisa”, de objeto inanimado e manipulável, tal como esta se contrapõe vulgarmente às noções de ser animado ou de pessoa.

                          I.      Estes diferentes usos do termo “objeto” em psicanálise têm a sua origem na concepção freudiana da pulsão. Freud, logo que analisa a noção de pulsão, distingue o objeto do alvo: “Introduzamos dois termos: chamemos objeto sexual à pessoa que exerce a atração sexual e alvo sexual à ação para que a pulsão impele[1] “. Conserva esta oposição ao longo de toda a sua obra e reafirma-a designadamente na definição mais completa que apresentou da pulsão: “... objeto da pulsão é aquilo em que ou por que a pulsão pode atingir o seu alvo” [2] ; ao mesmo tempo, o objeto é definido como meio contingente  da satisfação”. Esta tese primacial e constante de Freud, a contingência do objeto, não significa que qualquer objeto possa satisfazer a pulsão, mas que o objeto pulsional, muitas vezes muito marcado por características singulares, é determinado pela história – principalmente a história infantil – de cada um. O objeto é aquilo que na pulsão é menos constitucionalmente determinado.
Tal concepção não deixou de levantar objeções. Poderíamos resumir a posição do problema referindo-nos à distinção de Fairbairn[3]: estará a libido à procura do prazer (pleasure-seeking) ou do objeto (object-seeking)? Para Freud não há dúvidas de que a libido, ainda que desde cedo sofra a marca deste ou daquele objeto, está, na origem, inteiramente orientada para a satisfação, para a resolução da tensão pelos caminhos mais curtos segundo as modalidades apropriadas à atividade de cada zona erógena. No entanto, a idéia, sublinhada pela noção de relação de objeto, de que existe uma estreita relação de objeto, de que existe uma estreita relação entre natureza e os “destinos” do alvo e do objeto, não é estranha ao pensamento de Freud.
Por outro lado, a concepção freudiana do objeto pulsional constintui-se  nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, 1905) a partir da análise das pulsões sexuais. Que se passa com o objeto das outras pulsões, e nomeadamente, no quadro do primeiro dualismo freudiano, com o das pulsões de autoconservação No que diz respeito a estas ultimas , o objeto (por exemplo, a comida) é nitidamente mais especificado pelas exigências das necessidades vitais.
A distinção entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação não deve, contudo levar a uma oposição demasiadamente rígida quanto ao estatuto dos seus objetos: contingente num caso, rigorosamente determinado e especificado biologicamente no outro. Além disso, Freud mostrou que as pulsões sexuais funcionavam apoiando-se nas pulsões de autoconservação, o que significa nomeadamente que estas indicam às primeiras o caminho do objeto.
O recurso a esta noção de apoio ou análise permite deslindar o problema complexo do objeto pulsional. Se nos referirmos, a título, por exemplo, à fase oral, o objeto é, na linguagem da pulsão de autoconservação, o que alimenta; na da pulsão oral, é aquilo que se incorpora, com toda a dimensão fantasmática que a incorporação contém. A análise dos fantasmas orais mostra que esta atividade de incorporação pode incidir sobre objetos muito diferentes dos objetos de alimentação, definindo então a “relação do objeto oral”.

                       II.      A noção de objeto em psicanálise não deve apenas entender-se em referência à pulsão – se é que o funcionamento desta pode ser apreendido no estado puro. Ela designa  igualmente aquilo que para o indivíduo é  objeto de atração, objeto de amor, na generalidade dos casos uma pessoa. Só a investigação analítica permite  revelar, para além desta relação global do ego com os seus objetos de amor, o funcionamento próprio das pulsões no seu polimorfismo, as sua variações, os seus correlatos fantasmáticos. Nos primeiros tempos em que Freud analisa as noções de sexualidade e de pulsão, o problema de articular entre si o objeto da pulsão e o objeto de amor não está explicitamente presente, nem o pode estar; com efeito, os Três Ensaios, na sua primeira edição (1905), estão centrados na oposição fundamental que existiria entre o funcionamento da sexualidade infantil e o da sexualidade post-pubertária. A primeira é definida como essencialmente auto-erótica e, nessa fase do pensamento de Freud, a acentuação não incide no problema da sua relação com um objeto diferente do próprio corpo, ainda que fantasmático. A pulsão define-se na criança como parcial, mas em virtude do seu modo de satisfação (prazer localizado, prazer de órgão) do que em função do tipo de objeto por ela visado. Só na puberdade intervém uma escolha de objeto, da qual podem evidentemente encontrar-se “prefigurações” , “esboços”, na infância, o que permite  que a vida sexual, ao mesmo tempo que se unifica, se oriente definitivamente para outrem.
É sabido que entre 1905 e 1924 a oposição entre auto-erotismo infantil e escolha de objeto pubertária se vai progressivamente atenuando. São descritas diversas fases pré-genitais da libido, que implicam todas um modo original de “relação de objeto”. O equívoco que a noção de auto-erotismo poderia acarretar (na medida em que se arriscava a ser compreendida como implicando que o indivíduo ignorasse inicialmente qualquer objeto exterior, real ou até fantasmático) dissipa-se. As pulsões parciais, cujo funcionamento define o auto-erotismo, são chamadas parciais na medida em que a sua satisfação está ligada, não apenas a uma zona erógena determinada, como ainda ao que a teoria psicanalítica denominará objetos parciais. Entre estes objetos estabelecem-se equivalências simbólicas, trazidas a luz por Freud em As Transposições da Pulsão e especialmente do Erotismo Anal (Über Triebumsetzungem, insbesondere der Analerotik, 1917), intercomunicações que fazem passar a vida pulsional por uma série de metamorfoses. A problemática dos objetos parciais tem como efeito desmantelar o que a noção relativamente indiferenciada de objeto sexual podia ter, no inicio do pensamento freudiano, de englobante. Efetivamente, somos então levados a separar um objeto propriamente pulsional e um objeto de amor. O primeiro defini-se essencialmente como suscetível de proporcionar a satisfação pode designadamente ser fornecida por uma parte do corpo. A acentuação incide então na contingência do objeto enquanto subordinado a satisfação. Quanto a relação com o objeto de amor, essa se faz intervir, tal como o ódio, um outro par de termos: “... os termos amor e ódio não devem ser utilizados para as relações  das pulsões com seus objetos. Note-se a este propósito, do ponto de vista terminológico, que Freud, mesmo quando põe em evidencia as relações  com o objeto parcial, reserva a expressão “escolha de objeto” para a relação da pessoa  com seus objetos  de amor, que, também eles, são essencialmente pessoas totais.
Desta oposição entre objeto parcial – objeto da pulsão e essencialmente objeto pré genital, e objeto total – objeto de amor e essencialmente objeto genital, podemos ser levados a inferir, numa perspectiva genética do desenvolvimento psico-sexual, a idéia de que o indivíduo passaria de um para o outro por uma integração progressiva das suas pulsões parciais no seio da organização genital, sendo esta correlativa de uma tomada em consideração intensificada do objeto na diversidade e na riqueza das suas qualidades, na sua independência. O objeto de amor já não é apenas o correlato da pulsão, destinado a ser consumido.
A distinção entre objeto pulsional parcial e o objeto de amor, seja qual for o seu alcance incontestável, não implica necessariamente tal concepção. Por um lado, o objeto parcial pode ser considerado um dos pólos irredutíveis, inultrapassáveis, da pulsão sexual. Por outro lado, a investigação analítica mostra que o objeto total, longe de aparecer como um acabamento terminal, não deixa nunca de ter implicações narcísicas; no princípio da sua constituição intervém mais uma espécie de precipitação, numa forma modelada segundo o ego, dos diversos objetos parciais, do que uma feliz síntese destes.
Entre o objeto da escolha anaclítica ( O ego, no narcisismo, é também definido como objeto de amor, pode ser mesmo considerado como protótipo do objeto de amor, como o ilustra particularmente a escolha narcísica. Contudo, é no mesmo texto em que Freud enuncia esta teoria que ele introduz a distinção, que ficou clássica, entre libido do ego e libido objetal, objeto nesta expressão, é tomado no sentido limitativo de objeto exterior.) em que a sexualidade se esbate em proveito das funções de autoconservação, e o objeto da escolha narcísica, réplica do ego, entre “a mãe que alimenta, o pai que protege  e “o que se é, o que se foi ou que se queria ser”, um texto como Para Introdução do Narcisismo (Zur Einführung des Narzissmus, 1914) torna difícil de situar um estatuto próprio do objeto de amor.
                     III.      Por fim, a teoria psicanalítica refere-se também à noção de objeto no seu sentido filosófico tradicional, isto é, emparelhada com a de um sujeito percepcionante e cognoscente. Evidentemente que o problema da articulação entre o objeto assim concebido e o objeto sexual não pode deixar de pôr-se. Se concebemos uma evolução do objeto pulsional e, a fortiori, se vemos esta desembocar na constituição de um objeto de amor genital, definindo-se pela sua riqueza, pela sua autonomia, pelo seu caráter de totalidade, relacionamo-lo necessariamente com a edificação progressiva do objeto da percepção: a “objetalidade” e a objetividade não deixam de estar relacionadas. Vários autores assumiram a tarefa de harmonizar as concepções psicanalíticas sobre a evolução das relações de objeto com os dados de uma psicologia genética do conhecimento ou mesmo a de esboçar uma “teoria psicanalítica do conhecimento” (Sobre as indicações dadas por Freud, ver: Ego-prazer – ego-realidade, Prova de Realidade).


[1] FREUD S. Drei Abhandlungem zur Sexualtheorie, 1905. G. W. V, 34; S.E., VII, 135-6; Fr., 18.
[2] FREUD S. Trieb und Triebschicksale, 1915. G. W. X, 215; S.E., XIV, 122; Fr., 35
[3] Cf . FAIRBAIRN (W.R.D.), A revised Psychopathology of  the Psychoses and Psychoneuroses, 1941, I J. P., XXII. 250-279

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