“Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”.
(Fernando Pessoa)
Não consigo precisar exatamente como e quando começou em mim o dito processo de transformação. Sei que hoje estou aqui. E que algo ainda me pede para não ficar aqui, a não parar. Continuar seguindo por uma estrada que muitas das vezes se encontra as escuras e com aspectos aterrorizantes, como as arvores e casarões dos filmes de terror e suspense.
Lembro-me claramente do passado, passado que às vezes me assombra como um fantasma mal. Mas não só desta forma lembro-me do meu passado. O relembro como um referencial importante para ajudar-me no presente. Todavia, o passado está
Houve momentos que tive medo do meu passado. Porém, hoje não tenho mais. Tenho por ele respeito, e/ou certa admiração. Às vezes fico a contemplá-lo. Isso, o contemplo mais do que o admiro. Fico observando-o, como se estivesse assistindo um filme, e mentalmente consigo ver imagens e ouvir os sons destes momentos que outrora eram presentes. E que hoje nada mais são do que fragmentos do meu passado. E revê-los, determinadas (ou indeterminadas) vezes é como se estivesse navegando e houvesse para me guiar um farol, que me revela os obstáculos os quais devo se bom juízo e habilidade tiver me desviar, transpô-los. Pois, como já disse anteriormente, há algo dentro de mim, que por mais medo e receio que sinta, me pede a seguir adiante,
O passado deixa marcas, registros, anotações num diário de bordo. E a bordo estou no que chamo de viver. Esta incrível aventura. Viver é uma incrível aventura. Viver é análogo as histórias que conheci como: Mil Léguas Submarinas, Viagem a Centro da Terra ou Alice no País das Maravilhas. Viver é a grande aventura de toda humanidade. Viver é ato e potência, é devir. É descortinar o palco da vida. Lançar-se ao desconhecido.
Por vezes, e muitas vezes, sou levado a crer que minha transformação começou muito antes do que até então supunha. Imaginava que minha transformação tinha iniciado na adolescência quando gradativamente usava a aparente liberdade que tinha por mérito ou conquista. Quando aos poucos não mais me guiava pelos auspícios da minha família, escola etc. Quando acreditava que liberdade era acordar a hora que bem entendesse, ir a qualquer lugar etc. Enfim, fazer o que se quer o que se tem vontade, sem dar maiores e melhores satisfações a alguém. O tempo passando sobre mim, como enormes nuvens brancas sobre minha cabeça. Acreditava que liberdade era tão só realizar meus desejos o mais plenamente possível. Sonhar intensamente, indeterminadamente, e ir ao além. Ao além deste mundo estranho, aonde por vez ou outra num raro momento de lucidez, me deparava com seus habitantes sinistros, chorões, reclamantes, queixosos, insatisfeitos. Habitantes que se transvertem, mascaram. Os mesmos que antropofagicamente me caçam e são caçados.
Não, neste mundo horrendo não hei de permanecer um só momento. Ficarei suspenso, transcendente com minha liberdade.
Mas hoje vejo que não havia ainda liberdade em meus equivocados e suicidas exercícios de transcendência. O que fazia nada mais era do que uma inútil tentativa de sabotar um sistema opressor, que mais me sabotava do que eu a ele. Sistema que me destruía, e esmagava gradativamente o que de mais belo eu tinha que era a possibilidade, direito e dever inalienável, que é sonhar e acreditar em realizar o sonho. E talvez, neste processo de sonhar e realizar resida a liberdade. Pois quando se extingue o sonho ou a utopia, se extingue o próprio ser humano e todas as suas possibilidades de realização.
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não darei os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.
(Mãos dadas -Carlos Drummond de Andrade)
O tempo presente é mais desafiador que o futuro. O tempo presente é arriscar-se a cada passo dado em direção a um lugar. O tempo presente se aproxima neste exato instante, agora, agora, agora.
Em verdade creio que não existe o presente, existe o agora.
Sou o verbo ser conjugado no tempo agora.
Tempo agora imperfeito. Agora do subjuntivo. Tenho sonhado, tenho chorado, tenho agido, tenho sofrido...
O presente que é agora, me pede, implora e as vezes ordena que eu venha a agir. Me condena a sair deste estado catatônico. E me impulsiona a frente das questões da vida, da minha vida e da vida dos outros. Como disse Sartre, o intelectual é aquele que se mete aonde não é chamado. Mas eu não sou um intelectual. Sou apenas um ser ou um ente. Não! Sou um ser. Um ente é alguma coisa. Sou mais que uma coisa. Sou um ser que pensa em pensar já pensando, penso que sei não sabendo nada a não ser saber que de fato nada sei ou um dia quiçá, saberei. Penso que amo sem saber definitivamente o que venha a ser amor e suas derivações, suas transformações. Sou um ser que tem pensado muito ou pouco, certo ou errado, mas tenho pensado.
No agora reflito mais do que no passado. O agora é o tempo ideal para as realizações, para as transformações e revoluções.
O agora ordena a liberdade plena, e desta forma, não se pode deixar de ser livre depois. Não obstante, deixaremos agora de consumir desesperadamente. Agora não consumirei levianamente ou com um simulacro de razão, as informações ditas relevantes, as profissões de sucesso, o statu quo, celulares, microcomputadores e notebooks, línguas arcaicas e modernas, não consumirei Platão, Freud, Lacam, Marx, Marcuse. Não consumirei o que há de consumir nos livros, revistas, cinemas e teatros. Não consumirei a TV que não vê ninguém como alguém (e sim como algo ou alguma coisa, coisinha). Consumirei o cigarro que dizem matar-me, consumirei ódio ao capitalismo, que consome o homem com a fome. Que consome com fome a saúde, a Paidéia, a esperança, os meus sonhos. Capitalismo que consome a minha fome e vontade viver e quiçá de muitos outros. O tempo é agora. Não vejo como retroceder a ser o que já não sou mais (nem menos). É morte, a minha morte. Retroceder a caminhada, na caminhada. Retroceder a idéia, ponderar as críticas, amenizar o ímpeto. Render-se passivamente, domesticadamente, ao futuro, que demonstra incerteza e perigo. Mas não posso fazer isso, não consigo, em verdade não quero.
Vivo o presente, sendo desejoso de realizações. O medo que o futuro insiste em querer me projetar agora é apenas e nada mais que um medo. Eu vivo o presente, eu estou e sou o agora. O futuro nada mais é do que uma palavra que suponho ter vários significados. Oxalá! O futuro é apenas uma palavra, uma construção semiótica derivada da teimosia de nós homens sentirmos prazer e necessidade de dar-mos nomes e significados a tudo e todos.
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